Giovanni Boccaccio (1313-1375) foi um escritor da Renascença italiana. Sua obra mais importante, o Decamerão (com o subtítulo de Príncipe Galeotto), tem como pano de fundo a epidemia da Peste Negra que assolava a Europa nesse período. Sete moças (Pampinéia, Fiametta, Filomena, Emília, Laurinha, Neifile e Elisa) e três rapazes (Pânfilo, Filóstrato e Dionéio) procuraram refúgio fora da cidade de Florença por dez dias e ocuparam-se nesse período em contar histórias — algumas criadas e outras reelaboradas, num total de cem.
Na “Primeira Jornada” de Pampinéia o Autor fez uma vívida descrição da epidemia de peste que se iniciara nas “regiões orientais” e logo se estendeu pela Europa, assolando a cidade de Florença em 1348. Alguns trechos permanecem de interesse em nossos atuais tempos de pandemia de Covid-19 como um aviso para mantermos — hoje, como no século XIV — a humildade, a sensatez e a esperança:
Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. (…)
Nem conselho de médico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de tais doenças. Ao contrário. Fosse porque a natureza da enfermidade não aceitava nada disso, fosse que a ignorância dos curandeiros não lhes indicasse de que ponto partir e, por isso mesmo, não se dava o remédio adequado. Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lição de Medicina. (…)
(BOCCACCIO, p. 11-2.)
E:
… E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas, e deles. Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a saúde para si mesmo.
Pessoas havia que julgavam que o viver com moderação e o evitar qualquer superfluidade muito ajudavam para se resistir ao mal. Formando o seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera. Não procuravam viver melhor. Moderadamente faziam uso de alimentos simples, assim como de vinhos muito bons. Fugiam a qualquer ato de luxúria. Não ficavam a palestrar com ninguém, nem queriam ouvir falar de nenhum caso de morte, ou de doença, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos com a música e com os prazeres que pudessem ter.
Outras pessoas, levadas a uma opinião diversa desta, declaravam que, para tão imenso mal, eram remédios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir e troçar do que acontecesse, ou pudesse suceder. Como diziam, assim procediam, do modo como lhes fosse possível, dia e noite. Iam ora a uma tasca, ora a outra; bebiam imoderadamente e sem modos. (…)
Inúmeras pessoas preferiam o caminho do meio, entre os dois acima assinalados. Não evitavam os bons acepipes, como os primeiros, nem, igual os segundos, entregavam-se à bebida e a outras formas de dissolução. Ao contrário. Usavam todas as coisas, com suficiência e moderadamente, de acordo com o apetite. Não viviam fechados. (…)
(BOCCACCIO, p. 13.)
Mas, como lembrou Dionéio na “Despedida”, ao mencionar o término do período de retiro para que retomassem suas atividades em Florença:
… Como sabem, amanhã estarão completados quinze dias que nós, para achar alguma forma de entretenimento, e ainda para defender nossa saúde e nossa vida, deixamos Florença; agindo desse modo, fizemos cessar, para nós, a melancolia, a dor e a angústia que perpassavam sem cessar pela nossa cidade, desde que teve início essa época de pestilência; segundo me parece, realizamos de maneira honesta nosso desiderato (…) Sendo assim, e a fim de que não apareça, da prolongada convivência, um episódio que possa tornar-se em aborrecimento; afim de que ninguém possa tecer comentários desairosos, a respeito de nossa demora em condições de intimidade; e tendo tido, já, cada um de nós, a sua jornada, a sua parte de honra que ainda, neste instante, em mim está concentrada — penso, se isto também lhes agradar, que será conveniente, já agora, que retornemos ao lugar de onde partimos. (…)
(BOCCACCIO, p. 574.)
Pois, cumpridos os objetivos de escapar da epidemia e manter a saúde mental, a vida volta ao normal.
Bibliografia:
Boccaccio, Giovanni. Decamerão. (trad.) São Paulo: Círculo do Livro (sob licença da Hemus Livraria Editora Ltda.), s/d.