Parkinsonismo atípico: demência com Corpos de Lewy

A demência com corpos de Lewy constitui outras das formas esporádicas de parkinsonismo atípico, juntamente com a síndrome corticobasal (vide o post Parkinsonismo atípico: síndrome corticobasal de 27/07/2021), a paralisia supranuclear progressiva e a atrofia multissistêmica.

O psiquiatra e neuropatologista Kosaka Kenji [小阪憲司] (1939- ) publicou em 1976, com outros autores, um relato de caso mais pormenorizado de demência com achados de inclusões (corpos e neuritos de Lewy) semelhantes àquelas descritas em 1912 por Fritz Heinrich J. Lewy (1885-1950) no núcleo motor dorsal do vago, no núcleo basal (de Meynert) e alguns núcleos talâmicos de portadores(as) de doença de Parkinson..

Os corpos de Lewy consistem em inclusões proteicas intraneuronais compostas principalmente por α‑sinucleína. Ao contrário da descrição clássica, os corpos de Lewy corticais são menos definidos e não apresentam halo, o que dificultava a identificação destes antes do uso de técnicas de imuno-histoquímica.

Pela distribuição mais difusa pelo neocórtex, Kosaka denominou inicialmente a condição de “doença difusa com corpos de Lewy”. Outras descrições se sucederam, seguidas em 1996 pela publicação do primeiro consenso diagnóstico e a introdução do termo demência com corpos de Lewy.

Conforme o 4o Consenso do DLB Consortium de 2017, os critérios diagnósticos compreendem:

  • Demência, tipicamente com déficits iniciais mais proeminentes em atenção, função executiva e processamento visual e acometimento mais variável da memória.
  • Características clínicas principais
    (sendo as 3 primeiras geralmente mais precoces)
    Transtorno de comportamento do sono REM, que pode preceder o declínio cognitivo;
    Flutuações cognitivas, com variações pronunciadas de atenção e alerta;
    Alucinações visuais recorrentes, tipicamente bem formadas e detalhadas;
    Uma ou mais características espontâneas de parkinsonismo
    (bradicinesia, rigidez; menos comumente tremor de repouso; notar que um certo número de pacientes — estimado entre 20 a 25% — pode nunca desenvolver parkinsonismo clinicamente significativo)
  • Características clínicas de suporte
    (comumente presentes; especificidade diagnóstica indeterminada)
    Sensibilidade exacerbada a antipsicóticos; instabilidade postural; quedas repetidas; episódios transitórios de arresponsividade ou síncope; hiperssonia; disfunção autonômica (obstipação intestinal, incontinência/urgência urinária, hipotensão ortostática); hiposmia; outras modalidades de alucinações; delírios sistematizados; apatia; ansiedade; depressão.
  • Biomarcadores indicativos
    PET ou SPECT com hipocaptação de transportador de dopamina pelos gânglios da base;
    Cintilografia miocárdica com hipocaptação de 123I‑MIBG (e decorrente disfunção de inervação simpática);
    Polissonografia com ausência de atonia na fase do sono REM.
  • Biomarcadores de suporte
    Tomografia computadorizada ou Ressonância nuclear magnética com relativa preservação das estruturas do lobo temporal medial;
    SPECT com hipocaptação generalizada à varredura de perfusão/metabolismo; PET com hipoatividade occipital e preservação relativa do córtex cingulado posterior (sinal da ilha) ao estudo de 18F‑FDG;
    Eletroencefalograma com atividade de onda lenta posterior proeminente e flutuações periódicas na faixa pré‑alfa/teta.
Número de características principais presentes Número de biomarcadores indicativos presentes
2 ou mais DLB provável
1 1 ou mais
1 0 DLB possível
0 1 ou mais

Considera-se que na demência com corpos de Lewy os sintomas cognitivos apareçam antes (ou pouco depois) dos parkinsonianos e que na demência da doença de Parkinson os sintomas cognitivos apareçam após um quadro bem estabelecido dos sintomas motores (intervalo de tempo de 1 ano ou mais, conforme critérios do 4o Consenso do DLB Consortium). E é importante notar que é possível (e ocorre frequentemente) a concomitância clínica de demência com corpos de Lewy com a doença de Alzheimer, também contribuindo para uma maior variabilidade clínica e dificuldade diagnóstica.

Este grau de superposição diagnóstica faz com que a demência com corpos de Lewy seja com frequência subdiagnosticada — estima-se que constitua entre 4 a 20% do total de casos de demência e que, entretanto, cerca de metade dos casos confirmados com análise histopatológica tenham recebido outros diagnósticos em vida.

Diferentemente da doença de Parkinson, que apresenta um acometimento neurodegenerativo estereotipado (inicialmente nos núcleos dorsais motores do vago e do glossofaríngeo e no núcleo olfatório anterior, ascendendo pela ponte e mesencéfalo e somente numa fase posterior afetando o neocórtex) descrito em BRAAK, 2003, na demência com corpos de Lewy as estruturas afetadas e a progressão apresentam-se de maneira bem mais variável. Provavelmente ambas representem um mesmo espectro diagnóstico, o que motiva a proposta de alguns de denominá-las como “demências de corpos de Lewy”.

Tratamento

No tratamento da demência com corpos de Lewy é importante abordar os vários aspectos (sintomas cognitivos, psiquiátricos, motores, autonômicos) que necessitarem de tratamento, além de orientações para os cuidadores e para outros provedores de cuidados de saúde.

Sintoma a tratar Intervenções propostas Observações
Demência Inibidores da acetilcolinesterase
(Donepezil, rivastigmina, galantamina)
Considerar o uso de rivastigmina por via transdérmica em caso de efeitos colaterais gastrointestinais
Memantina Evidências menos claras de eficácia clínica
Possível efeito de modesta amplitude
Psicose (delírios, alucinações) Inibidores da acetilcolinesterase
Antipsicóticos Utilizar somente antipsicóticos sem ação sobre o receptor D2 (quetiapina, clozapina) e em caso de falha a outras medidas
Agitação Antipsicóticos Vide observação acima
Apatia Inibidores da acetilcolinesterase
Cafeína Não utilizar depois do início da tarde
Levodopa Relatos ocasionais de melhora ao uso
Antidepressivos
(ISRS, ISRSNa)
Evidência anedotal da eficácia
Selecionar agentes com menor efeito sedativo
Sonolência diurna excessiva
(excluídos outros distúrbios do sono)
Cafeína Vide observação acima
Metilfenidato, modafinil Manter somente se houver benefício clínico
Parkinsonismo Terapias de reabilitação
(Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia)
Levodopa Cautela no ajuste das doses
Menor resposta em relação à doença de Parkinson
Depressão
Ansiedade
Antidepressivos
(ISRS, ISRSNa)
Insônia Higiene do sono
Melatonina
Mirtazapina, trazodona Possuem efeito sedativo; podem ser utilizados também pelo efeito antidepressivo
Transtorno de comportamento do sono REM Melatonina
Clonazepam Cautela no uso, particularmente com o aparecimento de sintomas cognitivos
Hipotensão ortostática Hidratação, aumento de ingesta de sal, evitar mudanças posturais bruscas, uso de meia elástica de alta compressão
Fludrocortisona
Midodrina
(não comercializada no Brasil)
Cautela com a hipertensão supina
Incontinência urinária Antiespasmódicos vesicais com amônia quaternária
(Darifenacina, solifenacina, tróspio)
Disfunção erétil Inibidores da PDE5
(Sildenafil, tadalafil, vardanafil)
Apomorfina
Obstipação intestinal Hidratação, ingesta de fibras alimentares insolúveis, atividade física
Laxantes
(Docusato, lactulose, polietilenoglicol, etc.)
Utilizar apenas quando necessário; evitar uso continuado

É importante, nos tratamentos medicamentosos, equilibrar cuidadosamente os efeitos desejados dos tratamentos com os efeitos colaterais que possam piorar outros sintomas concomitantes.

Classe de medicações Observações
Agonistas dopaminérgicos
(Pramipexol, ropinirol, rotigotina, bromocriptina, cabergolina, apomorfina)
Piora dos sintomas comportamentais
Piora dos sintomas psiquiátricos
Amantadina
Anticolinérgicos
(Biperideno, trihexifenidil)
Piora dos sintomas cognitivos
Piora dos sintomas comportamentais
Piora dos sintomas psiquiátricos
Antidepressivos tricíclicos e tetracíclicos Efeitos colaterais anticolinérgicos
(Piora dos sintomas cognitivos, dos sintomas comportamentais e dos sintomas psiquiátricos)
Sedação excessiva
Antiespasmódicos vesicais com amina terciária
(Oxibutinina, tolterodina)
Antiespasmódicos vesicais com amina terciária atravessam a barreira hematoencefálica e apresentam mais efeitos colaterais anticolinérgicos centrais
(Piora dos sintomas cognitivos, dos sintomas comportamentais e dos sintomas psiquiátricos)
Antipsicóticos
(Todos os típicos e a maioria dos atípicos exceto, por enquanto, quetiapina e clozapina)
Contraindicação formal para uso de antipsicóticos com ação sobre receptores D2
Piora dos sintomas parkinsonianos
Piora dos sintomas cognitivos
Risco elevado de síndrome neuroléptica maligna
Evidências epidemiológicas de aumento de mortalidade em pacientes idosos(as) em uso de antipsicóticos
No caso das fenotiazinas, também hipotensão ortostática e sedação excessiva
Benzodiazepínicos Sedação diurna
Aumento do risco para quedas
Piora dos sintomas cognitivos
Dimenidrinato Efeitos colaterais anticolinérgicos
(Piora dos sintomas cognitivos, dos sintomas comportamentais e dos sintomas psiquiátricos)
Sedação diurna
Aumento do risco para quedas
Hipnóticos não-benzodiazepínicos Piora dos sintomas cognitivos
Sedação diurna
Aumento do risco para quedas
Inibidores da acetilcolinesterase
(Donepezil, rivastigmina, galantamina)
Possível limitação da dosagem devido aos efeitos colinérgicos
(Bradicardia, diarreia, náuseas, vômitos)
Inibidores da PDE5
(Sildenafil, tadalafil, vardanafil)
Piora da hipotensão ortostática
Levodopa Possível limitação da dosagem devido a piora dos sintomas psiquiátricos

Bibliografia:

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