A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) não recomendam nem estabelecem taxas ideais de número de leitos por habitante a serem seguidas e cumpridas por seus países-membros. Tampouco definem e recomendam o número desejável de médicos, enfermeiros e dentistas por habitante. Não existe, ainda, orientação sobre a duração ideal das consultas médicas ou um número desejável de pacientes atendidos por hora.
(Leitos por Habitantes e Médicos por Habitante [2003])
Quando se discute o acesso a serviços de Saúde no Brasil muito se fala no famoso número de “1 médico por 1.000 habitantes, preconizado pela OMS”. Mas, quando procuramos pela origem desse número, não o encontramos em lugar nenhum. Inclusive o documento Leitos por Habitantes e Médicos por Habitante de 2003 da OPAS, citado na epígrafe, deixa muito claro que
A OMS define apenas padrões “duros”, ou seja, para os quais existe evidência inquestionável, demonstrada por pesquisa, e reprodutível em qualquer tempo e lugar. Em determinadas situações, podem ser estabelecidas “metas”, ou seja, objetivos quantificados ou qualificados que devem ser alcançados, em determinado tempo ou lugar, em função de um projeto. O exemplo são as metas de “Saúde para Todos no Século 21”, acordadas pelos países-membros da organização.
O texto prossegue com
A definição de índices, como número de leitos ou médicos por habitantes depende de fatores regionais, sócio-econômicos, culturais e epidemiológicos, entre outros, que diferem de região para região, país para país. Isso torna impossível, além de pouco válido, o estabelecimento de uma “cifra ideal” a ser aplicada de maneira generalizada por todos os países do planeta.
Infelizmente o texto original não se encontra mais no site da OPAS, e uma busca dentro do site sobre o assunto “médicos por habitantes” (Buscar – OPAS/OMS | Organização Panamericana da Saúde) relaciona várias páginas sobre o Programa Mais Médicos (2013-2019), no qual a própria OPAS atuou como intermediadora entre o governo cubano e o Ministério da Saúde brasileiro.
Vários outros textos, entretanto, fazem referência (direta ou não) ao texto da OPAS, como o da publicação Demografia Médica no Brasil 2018 do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP (com apoio institucional do CFM e do Cremesp e colaboração da AMB e da CNRM:
Comparações de dados sobre demografia médica entre países precisam ser feitas com ressalvas, pois não há consenso nem uniformidade sobre alguns indicadores, valores de referência, fontes e formas de captação dos dados.
O indicador mais utilizado – médico por mil habitantes – tem pouca expressão se utilizado isoladamente. Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) não recomendam nem estabelecem taxas de médicos por habitante como referência, pois dependem de fatores regionais, socioeconômicos, culturais e epidemiológicos. Estes órgãos enfatizam que é pouco válido estabelecer uma “taxa ideal” generalizada para todos os países.
Uma taxa nacional não alcança as desigualdades de concentração de profissionais dentro dos países, que costumam ser maiores ou menores de acordo com a extensão do território, as características do sistema de saúde e as desigualdades socioeconômicas regionais.
A OMS lembra que estimativas de médicos são retiradas de múltiplas fontes administrativas, censos populacionais, levantamentos sobre emprego e estabelecimentos de saúde. A grande diversidade de fontes implica variabilidade considerável tanto do alcance quanto da qualidade dos dados.
A OCDE também vê limitações ao comparar países utilizando apenas a razão de médicos por mil habitantes. Além dos limites de diferença temporal entre os dados utilizados (neste estudo variam de 2014 a 2016), as bases de dados podem ter diferenças significativas. Alguns países podem considerar ou não os médicos residentes como profissionais habilitados, enquanto outros contabilizam estudantes em internato como médicos, ou inserem nas estatísticas outros profissionais que compartilham funções com médicos, dependendo da regulamentação local de profissões. Há contagens que consideram o número de médicos profissionalmente ativos que atendem pacientes, ou o número de médicos habilitados a exercer a Medicina (em exercício ou não).
Os dados comparativos sobre médicos especialistas entre países também devem ser analisados com ressalvas. A definição de “especialista” varia conforme a legislação local, as regras do ensino de graduação e de residência médica, o funcionamento dos sistemas de saúde e a prática da profissão médica. Na maioria dos países, generalista é o médico com formação geral, sem especialidade, e especialista é aquele com titulação em especialidades clínicas e cirúrgicas; em outros países, generalista é o especialista em áreas consideradas gerais ou básicas, como Pediatria, e Ginecologia e Obstetrícia; e há países onde o generalista equivale unicamente ao médico de família.
Curiosamente um trabalho indiano do Journal of Family Medicine and Primary Care de setembro de 2018 faz menção ao “número mágico”, quando aparece esta passagem no resumo:
Considering the number of registered medical practitioners of both modern medicine (MBBS) and traditional medicine (AYUSH), India has already achieved the World Health Organization recommended doctor to population ratio of 1:1,000 the “Golden Finishing Line” in the year 2018 by most conservative estimates.
Essa menção naturalmente levanta a questão: de onde apareceu este número?
Uma busca em inglês sobre o assunto no site da OMS nos leva à página WHO | Density of physicians (total number per 1000 population, latest available year), onde aparece sob “Situation and Trends”:
Available statistics show that over 44% of WHO Member States report to have less than 1 physician per 1000 population.
Health workers are distributed unevenly across the globe. Countries with the lowest relative need have the highest numbers of health workers, while those with the greatest burden of disease must make do with a much smaller health workforce. The African Region suffers more than 24% of the global burden of disease but has access to only 3% of health workers and less than 1% of the world’s financial resources.
Ao que parece o “número mágico” que circula por aí é apenas um “número de corte”, adotado para fins estatísticos e epidemiológicos.
Bibliografia:
Kumar, R.; Pal, R. India achieves WHO recommended doctor population ratio: A call for paradigm shift in public health discourse!. J Family Med Prim Care. 2018;7:841-4.
Scheffer, Mário (coord.) Demografia Médica no Brasil 2018. São Paulo: FMUSP, CFM, Cremesp, 2018. p. 135-6.
Buscar – OPAS/OMS | Organização Panamericana da Saúde. Acessado em agosto de 2020.
WHO | Density of physicians (total number per 1000 population, latest available year). Acessado em agosto de 2020.